Uma série de audiências públicas realizadas esta semana pela Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Piauí (Semarh-PI) pode definir o futuro do maior território quilombola da região Nordeste do país.
Localizado na da Serra da Capivara, sul do Piauí, o Quilombo Lagoas abrange aproximadamente 62 mil hectares que se estendem por seis municípios: São Raimundo Nonato, Bonfim do Piauí, Várzea Branca, Dirceu Arcoverde, São Lourenço do Piauí e Fartura do Piauí. Além da fauna e flora típicas da caatinga, o território abriga 119 comunidades que reúnem, ao todo, cerca de 1.500 famílias quilombolas que cultivam um modo de vida tradicional baseado na agricultura familiar, na criação de pequenos animais e na apicultura.
Embora seja reconhecido como território quilombola desde 2009 pela Fundação Palmares, todo esse ecossistema tem sido ameaçado por um projeto de mineração. Mais precisamente, o “empreendimento de extração e beneficiamento de concentrado de ferro premium” da empresa SRN Holding S.A.
Presente na região desde 2015, a mineradora tem sido alvo de uma série de denúncias de moradores e representantes do poder público sobre irregularidades no processo de desenvolvimento do projeto, sobretudo no que se refere às questões de responsabilidade ambiental e ao diálogo, ou a falta dele, com as comunidades locais.
Nos últimos anos, a pedido do Ministério Público Federal, a Vara Federal, subseção judiciária de São Raimundo Nonato, chegou a anular uma licença prévia emitida para a empresa pela Semarh. Na ocasião foi verificado que o Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) apresentado pela mineradora sequer reconhecia a existência de comunidades quilombolas no território.
Audiências
O embate mais recente entre a SRN e as comunidades tradicionais envolve a realização de cinco audiências públicas convocadas pela Semarh para esta semana para discutir o novo Relatório de Impacto Ambiental. Os encontros foram organizados para ocorrer em três dias – de terça (16) a quinta-feira (18) – nos cinco municípios afetados pelo empreendimento: São Raimundo Nonato, Bonfim do Piauí, Dirceu Arcoverde, São Lourenço do Piauí e Fartura do Piauí.
De acordo com Benoni Moreira, da Defensoria Pública da União (DPU), o modo como foi planejada a agenda de audiências inviabilizou a participação efetiva das comunidades pois, além de desconsiderar a distância entre as localidades – de até 80 quilômetros em alguns casos –, estabeleceu que os encontros sejam realizados nos centros urbanos, longe das zonas rurais onde os quilombolas de fato vivem.
Segundo Moreira, trata-se de “uma forma descarada de tentar passar por cima e licenciar o empreendimento a qualquer custo”.
“A DPU recomendou à Semarh e à empresa que adiassem as audiências e revissem o cronograma e a logísitica para essas audiências de tal modo a viabilizar a participação das comunidades diretamente afetadas e garantir, conforme a instrução normativa estabelece, toda a logística para o deslocamento, o que inclui, por exemplo, o transporte e a alimentação das pessoas que vão participar das audiências. Isso é obrigação deles. Está expressamente previsto. Mas foi simplesmente ignorado tanto pelo órgão ambiental como pela mineradora”, explicou o defensor público à Pulsar.
Federalização
De acordo com Benoni, as comunidades, com apoio da DPU, devem ingressar com uma ação na Justiça para questionar a realização de tais audiências.

Contudo, devido aos riscos potenciais tanto para as comunidades como para o meio ambiente, além de acionar os instrumentos jurídicos cabíveis, o defensor defende que o processo de licenciamento do projeto passe para a esfera federal e envolva órgãos como o Ministério do Meio Ambiente, o Ministério dos Direitos Humanos, o Ministério da Igualdade Racial, a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados e o Conselho Nacional de Direitos Humanos.
“Esses órgãos têm que entrar nessa pauta e nessa discussão para que a gente consiga ter o mínimo de seriedade nesse procedimento. Porque do jeito que está, eles vão passar o rolo compressor mesmo. Vão passar por cima da comunidade e, quem sabe, daqui a 30 anos vão fazer o que fizeram com as comunidades de Alcântara [no Maranhão]: ir lá na Corte Interamericana de Direitos Humanos e apresentar um pedido de desculpas depois de todo o estrago que fizeram”, alertou.
Perigo no ar, água e terra
Morador e mobilizador cultural e social do Quilombo Lagoas, Salvador Viana, conta que as comunidades da região tem sofrido com as ameaças de mineradoras há mais de uma década.
“Esse processo começou quando as pessoas da mineradora chegaram e invadiram as terras, muitas sem pedir permissão. Invadindo com carros, cortando arame, fazendo estradas e perfurações sem pedir autorização aos donos da terra. Desde 2013 que a gente, como instituição organizada, denuncia essa invasão do processo de mineração”, relembra.
Sobre os impactos da exploração de minério de ferro na região, Salvador destaca que, embora supostamente menos agressiva, a mineração a seco, técnica anunciada pela SRN nas audiências públicas, também afetará diretamente a vida das comunidades tradicionais. Em primeiro lugar porque o método emite grandes cargas de sedimento no ar, o que implica na contaminação do ar, de fontes d’água (como barreiros, açudes e barragens).
“Um dos principais benefícios que os governantes trouxeram para nós foram o programa um milhão de cisternas. Até isso, a nossa água de beber vai ficar comprometida porque essa poeira vai se alojar nas telhas e, quando chover, a água que a gente for beber vai ser uma água contaminada”, detalha.
Além disso, o minério dispersado no ar também tende a se depositar sobre a terra e a flora, inviabilizando as atividade de agricultura e apicultura e acelerando a desertificação na região.
“A própria mineradora fala na questão de criar um cinturão verde para ‘atalhar’ a poeira. Mas como é que vão criar um cinturão verde numa área semiárida? Eles falam de plantar plantas nativas como aroeira, angico, para segurar essa poeira. A gente sabe que em dois anos uma aroeira não cresce nem um metro. Como vai segurar esse tanto de poeira? A gente percebe que a mineração, como vai ser feita, vai aumentar a desertificação em alguns lugares do território quilombola, vai aumentar a zona de calor e vai espalhar partículas de poeira de minério de ferro no ar. A tendência é a terra ficar infértil e aqui virar um grande deserto”, concluiu o mobilizador social.
Professora no município de Bonfim do Piauí e moradora na comunidade rural de Alto Alegre, Andréia Viana também suspeita das propostas apresentadas pela SRN nas audiências.
“Todos estamos preocupados porque sabemos que vamos ser afetados diretamente com essa situação. Na audiência com a empresa, eles não estão mostrando a realidade do que é uma mineração e suas consequências. Só estão mostrando o lado positivo que a empresa diz que tem. Mas nós sabemos, temos o conhecimento de que não é como a empresa está mostrando”, afirmou à reportagem.
“São várias as comunidades que estão ao redor de onde eles pretendem instalar as minas. E a empresa mostra que a comunidade mais próxima fica a dois quilômetros, o que não é verdade. Tem comunidade que é menos de um quilômetro em linha reta. Sabemos que isso é local que é afetado diretamente. Sabemos que a mineradora lá vai mudar muito a nossa vida. Estamos lutando pra que isso não ocorra. E se vier ocorrer, que seja respeitando os nossos direitos”, acrescentou a professora.
Outro lado
Em nota à Pulsar, a Semarh informou que a realização das cinco audiências públicas para discussão do Relatório de Impacto Ambiental relativo ao empreendimento da SRN Holding S.A “está de acordo com a Resolução Conama nº 01/1986 e com a Lei Estadual nº 6.947/2017”. A secretaria acrescentou que “a Justiça Federal já julgou que não há qualquer irregularidade no que diz respeito à atuação da Semarh, que já deu início ao processo de licenciamento”.
Em relação às audiências, a Semarh destaca que “a lei não obriga a disponibilização de transportes, apenas exige que seja garantida a participação da maior quantidade de pessoas potencialmente afetadas” e que a recomedação do MPF foi para “a realização de 05 (cinco) audiências nos 05 (cinco) municípios afetados, como está sendo realizado pela Semarh”. “Destacamos ainda que as audiências foram divulgadas com antecedência, dia 30 de março de 2023”, complementa o texto.
Quanto aos quilombolas, a secretaria afirma que “compete ao INCRA se manifestar no processo de licenciamento ambiental”. Neste sentido, a Semarh lembra que “instou o INCRA a se envolver no processo desde 2020, conforme as evidências constantes do processo”. O texto da nota também ressalta que “não haverá remoção de população”.
A Pulsar Brasil tentou contato com a SRN Holding S.A., mas não obteve retorno até o fechamento desta reportagem.